Diogo Mal e Cura Com Música no Filme ''Balas e Bolinhos''

Vídeo 1. “Aurora” (2012), para coro.
Figura 9. A escala usada na “Aurora”, subdividida nos dois tetracordes que a formam. Os números correspondem à quantidade de passos que constituem cada intervalo musical no sistema de 12 notas por oitava. O primeiro tetracorde desta escala é o mesmo que é usado na escala maior, mas o segundo tetracorde tem uma nota modificada, o que altera completamente a sua estrutura intervalar.
Qual era a utilidade em criar metodicamente todas estas escalas e combinações intervalares? Bom, mesmo que pareça que eu estava a explorar teoria música como um fim e não como um meio para atingir um fim (naquela altura todos à minha volta pareciam achar que era o caso, ah ah)... o objetivo era vir a escrever com estes materiais, compor (e improvisar, pois é divertido).

Nesta altura (devia ter uns 17/18 anos), eu admirava compositores do séc. XX como Olivier Messiaen, Béla Bartok, Arnold Schoenberg, Claude Debussy e Pierre Boulez, pois eles tinham inventado as suas próprias maneiras idiossincráticas emetodologicamente lógicas de compor música. Eles próprios (ou musicólogos que compreendiam bem a sua música) também escreveram livros e ensaios para explicar os seus processos criativos (que espetáculo!). É possível que assim seja por eu virde uma família de engenheiros, físicos e professores primários e universitários (e de também estar no espectro do autismo), mas, para mim, conceptualizar música através de números e sistemas dá-me imensa satisfação (caso ainda não tenham reparado, ah ah). Portanto... com um estado de espírito parecido ao destes compositores, decidi aplicar toda a minha “nerdisse” naquilo que idealizava ser o meu próprio caminho musical... 

... apenas para logo a seguir encontrar-me num beco sem saída. Vejam só: fazer combinações com tetracordes idiossincráticos, (e criar novos no decorrer do processo), é muito giro (se bem que eu não vos iria culpar se não tivessem a mesma opinião... a sério...), mas a dada altura deparamo-nos com demasiadas redundâncias numéricas e de notação quando se usa o piano como referência (ou qualquer outro instrumento ou prática de afinação baseada em 12 notas idealmente equidistantes por oitava). Algumas destas redundâncias estão marcadas nos meus rascunhos na Figura 8. 

Heis um exemplo:
Faixa 1. “Hora de Ponta” (2012) para big band de jazz.
Na minha composição seguinte, “Hora de Ponta”, que escrevi nos tempos do secundário para a Big Band Júnior (uma orquestra/escola de jazz juvenil onde eu tocava baixo elétrico), usei a seguinte escala (que é conceptualmente mais ousada que a que usei na “Aurora”):
Figura 10. A escala usada na “Hora de Ponta”, como está escrita na partitura.
O tema principal e a harmonia são todos derivados desta escala (se bem que, na segunda secção desta peça, eu transponho-a várias vezes). No entanto, esta escala foi originalmente conceptualizada como sendo gerada através da mistura de um tetracorde (que consiste em 4 notas, todas à distância de um meio-tom cromático entre si) consigo mesmo de modo que a escala que se forma repita à oitava (um processo não muito diferente ao que leva à criação da escala maior).
Figura 11. A escala usada na “Hora de Ponta”, subdividida nos dois tetracordes que a formam, como foi originalmente conceptualizada. Os números correspondem à quantidade de passos que constituem cada intervalo musical no sistema de 12 notas por oitava.
Figura 12. A escala maior, subdividida nos dois tetracordes que a formam. Os números correspondem à quantidade de passos que constituem cada intervalo musical no sistema de 12 notas por oitava.
A metodologia que usava para combinar tetracordes para gerar escalas tinha uma característica importante: existirem sempre 7 nomes de nota diferentes (Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá e Si) para cada altura musical (ou frequência), sendo que acidentes cromáticos eram depois adicionados a estes nomes de nota. Dado que estas escalas eram conceptualizadas no contexto de um paradigma de 12 notas por oitava, dependendo da música que estivesse a escrever, se fizesse sentido reescrever estas alturas de uma forma diferente (especialmente se tornasse a leitura mais fácil), assim o faria. Isto foi o que aconteceu tanto na “Hora de Ponta” como em todas as seguintes composições que foram escritas com esta metodologia.

Portanto,
Figura 13. A escala usada na “Hora de Ponta”, como foi conceptualizada.
tornou-se,
Figura 14. A escala usada na “Hora de Ponta”, reescrita.
Preciso de admitir uma coisa: a quarta aumentada Mib-Lá é muito mais fácil de ler e imaginar por ouvido do que a “segunda quadruplamente aumentada” Fább-Solx (eita!). Ainda, não obstante de me ter dado ao trabalho de fazer todas estas contas para construir e escrever esta escala, quando começámos a ensaiar a “Hora de Ponta”, o nosso maestro disse-me algo do género “pois, percebo como tu inventaste esta escala, mas esta composição está essencialmente em Dó menor, mas com umas notas sujas... não percebo a razão porque te deste a este trabalho todo só para depois escreveres em Dó menor”. Auch... mas ele não estava errado! Claro que os seus comentários (ou até mesmo os meus esquemas composicionais aparentemente e desnecessariamente complicados) não são previsões relativamente à qualidade da música que é escrita com eles. No entanto, eles expõem uma certa dissonância cognitiva que tinha na minha prática criativa naquela altura.

Os meus materiais pré-composicionais (um termo que é comumente usado nos círculos da música do séc. XX e contemporânea) eram bastante mais ousados e conceptualmente complexos que a música que eu estava de facto a escrever (como se pode reparar ao ouvir as duas composições aqui já expostas). Sim, uma coisa influenciava a outra, mas muuuuuuuito ligeiramente. Alguma coisa tinha que mudar... os sistemas, a minha intuição composicional, ou ambos, pois estavam em tensão um com o outro. Caso contrário, iria ficar bloqueado, criativamente. Eu não queria admitir isto na altura (sempre fui um bocado teimoso), mas eventualmente acabei por aceitar o feedback dos meus professores. Sendo assim, acabei por passar a maior parte da minha licenciatura e mestrado a tentar resolver este desafia (e escrevi muita música, sendo que me sinto bastante orgulhoso de algumas peças que escrevi nesta altura, mas elas não são particularmente relevantes para esta série de ensaios; talvez no futuro regresse a elas).

“Heis quando senão porém”, do nada, esta peça “microtonal” (e “xenarmónica”) foi publicada num fórum online que fazia parte:
Vídeo 2. “Aphoristic Madrigal” (2015), para quarteto vocal e órgão Fokker em 31 Divisões Iguais da Oitava,
composto pelo compositor e maestro brasileiro Fabio Costa.
O... meu... cérebro... explodiu! Tinha acabado de conhecer o Morpheus, tendo-me sido revelado a Matrix, e tomado o comprimido vermelho.

Claro! Como é que isto não me passou pela cabeça? Porquê 12 notas por oitava e não outro número completamente diferente? Ou ainda: porquê dividir a oitava e não outro intervalo? Porquê sequer dividir um intervalo? Porque não outro paradigma diferente? Em retrospetiva, acho que já sei porquê: porque os instrumentos que tocava (guitarra, piano, baixo elétrico) e todos os softwares musicais com que interagia estavam afinados em 12 Divisões Iguais da Oitava. Quando tinha aulas de teoria musical, ou cantava a solo ou em coro nos tempos do conservatório, todos os ensaios e aulas eram dirigidos com um piano, que era usado como referência (para não nos desviarmos da sua afinação). A ideia simplesmente numa me tinha ocorrido pois este era o universo que conhecia. Era tudo o que existia, o que pensava ser “real”, o que tinha sido levado a acreditar durante anos. Nada seria como antes a partir deste momento!

8 anos mais tarde, aqui estou, prestes a concluir o meu projeto de doutoramento em composição, que é relacionado com este tópico. Agora, quando improviso (ou componho), a música que faço pode soar assim:
Vídeo 3. “Submerged”, uma improvisação no Lumatone em 29 Divisões Iguais da Oitava.
Tendo agora escrito (talvez em demasia) sobre mim próprio, nos próximos ensaios vamos explorar este universo da música “microtonal” e “xenarmónica” (“xenharmonic” em inglês), fazendo uso de várias representações visuais geométricas (que é outra das minhas paixões: a geometria, ou melhor, arte geométrica).